Giovanna largou a arma na gaveta e voltou a trancá-la. Que patético!
Não podia acreditar que por um minuto sequer tinha cogitado a ideia de usá-la. Em sua mente havia sonhado com esse momento. Agora já tinha planejado data e hora, carregado a bateria da câmera e separado os instrumentos que precisaria.
Voltou a abrir a gaveta e pegou uma caderneta marrom e sua caneta de bico fino. Colocou as duas sobre a cômoda e trancou a gaveta novamente, não sem antes dar um ultima olhada na arma.
24 de maio de 2014
Pensamentos psicopatas rodavam em sua mente
Mente saudável que mentia saudosamente.
Poderia ser sociopata, psicopata e uma infinidade
De outras doenças da mente.
Um versinho para celebrar a noite. Giovanna versou em sua caderneta, como assinatura, desenhou o olho de André e a letra G. Na semana passada, ele havia dito que somente Giovanna conseguia desenhar seu olho com tamanha exatidão. Ela sorriu.
No canto da sala, André repousava com a cabeça encostada na parede, os braços pendiam sobre suas pernas e levemente o polegar encostava no rasgo que sua calça tinha, um pouco acima do joelho.
Aproximou-se dele e com calma tirou seu chapéu, deixando os cabelos loiros caírem sobre o rosto. Gostava deles assim, cobrindo parcialmente os olhos e a sobrancelha arqueada.
-Meu bem, fiz o café do modo como gosta. Duas doses de conhaque. Sente o cheiro? - Disse com um sorriso sádico nos lábios vermelhos.
Giovanna era magra e foi com dificuldade que conseguiu levantar André e o arrastar para a mesa da cozinha, sentando-o na cadeira de frente para a sua. Voltou a colocar o chapéu em sua cabeça, deixando o cabelo formar uma estranha ondulação, como ele sempre costumava fazer.
A pele de André agora exibia um tom mais pálido do que nunca. Era como uma pintura em branco, onde só se destacavam as veias de um verde quase cinza que chegavam a formar um mapa. As veias eram os rios.
.
Em algum lugar, uma pinta vermelha
Mesmo sem vida, André continuava com aquele ar maravilhosamente depravado. Sua boca formava um sorriso tênue e vago. O cabelo era fino, de um loiro morto. Mesmo se vestisse seu melhor casaco branco, sapatos de bico fino marrom e penteasse os cabelos para trás, jamais conseguiria disfarçar aquela aparência perversa e decadente. Era como um anjo, mas dos caídos.
Sua camisa branca, agora manchada de sangue, proporcionava um ar mais atormentado, que combinava tão bem com ele. Era bonito como o sangue escuro combinava com o tom pálido de sua pele.
A pele, sempre a pele.
Ela era o motivo por André estar ali, naquela situação. E aqui cabe uma nota.
Giovanna não trancou a arma na gaveta por covardia. Não podia estragar sua obra perfurando sua pele com algo tão banal quanto uma arma. Preferiu a adaga alemã que André tinha lhe dado de presente de aniversário. Era afiada, reluzia com o mínimo sinal de luz. O golpe foi certeiro, direto no abdômen.
Se disparasse a arma estaria tudo acabado.
Prepararia um café com conhaque, sentaria no sofá e ligaria a TV. Esperaria até a manhã seguinte. E não seria preciso esperar muito, logo veria a si própria nos noticiários da manhã.
Manhã news, SBT manhã, SP no ar, seu rosto estamparia todos.
Qual seria a manchete?
“Mulher atira em ex companheiro por ciúmes”
Seria de dar pena. Um crime tão bonito submetido a uma manchete ridícula e barata daqueles jornais imundos e hipócritas.
Giovanna nunca sentiu ciumes de André. Nunca brigaram, nunca houve desentendimentos. Assim como sua melhores lembranças, seus melhores versos sempre foram dedicados à André.
O que nutria era visto como obsessão por seus amigos, os remédios que sua psicóloga receitava eram bons, tomava-os sempre antes do almoço. Mas ele não entendiam, nunca poderiam entender.
Giovanna não tinha nenhum problema, não tinha nada de anormal com sua mente, ela funcionava bem. Até melhor do que a de muita gente por ai.
Não, eles não podem entender.
Foi quando assistiu ao mais novo filme que retratava a vida de Ginsberg, seu poeta favorito, que tudo ficou claro. Tudo se acalmou.
"Algumas coisas, assim que as amamos
se tornam nossas para sempre,
E se tentarmos deixá-las elas dão
a volta e regressam para nós.
Se tornam parte de quem somos
Ou destroem-nos."
Era a citação de que mais gostava. Escreveria em um pedaço de papel e deixaria junto ao corpo de André. Continuou observando a mancha de sangue que aumentava na camiseta dele, era de um tonalidade bonita.
- Já teve vontade de matar alguém, só pra saber como é? - Sempre perguntou isso para André, e ele sorria, nunca respondia.
- Você sempre soube,querido. É tão culpado quanto eu.- André não respondeu, não poderia. Mas ainda assim o sorriso depravado continuava ali.
No caso das manchetes, Giovanna daria algo melhor para eles. De um crime banal faria uma obra de arte. A mesma adaga que sorveu os goles da vida de André serviria para encher de vida as tapeçarias da cidade. Pesquisou bastante. Dissecou livros antes de dissecar seu amor. A pele de André daria belos tapetes.
- Você sempre gostou dos meus pés e eu da sua pele. Ainda sou sua artista preferida? - Giovanna tomou o último gole do seu café que já estava frio, foi até o quarto e buscou a caderneta. Deixou o olhar se demorar no rosto de André.
Giovanna ficou ali absorta em seus pensamentos.
Era tão bonito conseguir ver poesia em tudo.
- Você sempre gostou dos meus pés e eu da sua pele. Ainda sou sua artista preferida? - Giovanna tomou o último gole do seu café que já estava frio, foi até o quarto e buscou a caderneta. Deixou o olhar se demorar no rosto de André.
Giovanna ficou ali absorta em seus pensamentos.
Era tão bonito conseguir ver poesia em tudo.